Um pouco de biografia
Um pé depois do outro, pé ante pé. Com perninhas tortas, o mundo aprende a caminhar. E pouco a pouco vai deixando pra trás as fraldas, os medos e um bocado de chão. O chão que fica é só chão. As pernas, com seus passos, apenas pernas. Raladas, machucadas, cansadas. As pernas não percebem os passos. O toc toc toc é uma força invisível que coloca um pé depois do outro, pé ante pé. Curiosas, as pernas andam. Com pressa, as pernas correm. E nesse compasso quase automático, se esquecem de que são a força que movimenta o mundo. As pernas não se dão a importância que têm. As pernas só se reconhecem quando se perdem. Alijadas de sua função, as pernas choram. O mundo para. O chão não se move. E os medos alcançam aquela menininha, sentada sobre almofadas em uma cadeira de rodas. Suas pernas pensam: "se nunca mais nos levantarmos daqui, o chão, os passos, o futuro, serão eles os mesmos? Haverá passos, futuro, além desse chão que já não se move?". A menininha, equilibrada na cadeira de rodas, espanta o temor com as mãos. As rodas da cadeira de rodas ajudam as pernas, deixando aquele chão com aqueles medos pra trás. E a menininha, sorridente em cima de suas pernas tortas, garante a elas que, quando voltarem a funcionar, o mundo tornará a ser exatamente como antes: um pé depois do outro, pé ante pé.
Depois da chuva
Foi um dia chuvoso – tão chuvoso quanto um dia poderia ser. E eu deitada na cama, semanas atrás, reclamando da falta de umidade no ar. Foi preciso menos do que alguns pés encharcados pra me arrepender de determinadas vontades. Na confusão das noites insones, esqueci-me de que a época das chuvas coincide com as decisões importantes da minha vida. Tá explicado.
Setembro é sempre um mês de mudanças. Não digo só por causa do meu aniversário. Trocar de idade é um evento importante, mas importante mesmo é o que a gente faz com o número a mais que ganhou. Tenho um ano pra fazer jus aos meus 22; um ano começando da chuva da semana passada.
Saí do quentinho da garagem e de repente era setembro. Precisei recapitular como funcionam o limpador de para-brisa, o desembaçador e a cautela. Parada no semáforo, mal pude ver quando o vermelho virou verde. Fiquei estacionada ali, esperando qualquer coisa que me despertasse do The Verve do rádio. Foi o carro de trás, que, perdendo a paciência, passou por mim cantando pneu. Idiota. Quem é que disse que sinal verde foi feito pra se passar? Eu precisava mais do que uma luz pra tomar coragem de pisar no acelerador e me esquecer de toda a dificuldade que iria vir. No rádio, era minha voz que cantava: All this talk of getting old, it's getting me down, my love.
Naquele dia, percebi que eu pesava muito mais do que um 2 + 2.
[Texto de 2010. Desenho de nem lembro mais]